quinta-feira, 7 de abril de 2016

Mas afinal como se pratica o feminismo?


Aqui há uns dias estava eu a trocar argumentos com a juíza conselheira Clara Sottomayor, publicamente, na sua página de Facebook, sobre problemas como a violência doméstica e a alienação parental (que a douta conselheira rejeita e eu alerto que existe, de facto), quando a jurista de reconhecido mérito (e merecido) questiona a minha natureza feminista e o meu activismo. Pergunta-me se eu tenho textos publicados que provem que sou de facto uma feminista. E insiste: mostre-me os seus textos.

Fiquei pasma. E fiquei a pensar naquilo. Fiquei a pensar se só serão feministas as mulheres que tenham publicado textos em órgãos de comunicação social ou em páginas de organizações activistas. Se só serão feministas as mulheres que têm a oportunidade de chegar à Assembleia da República, como deputadas, ou pertencerem a um partido, onde têm um palco para amplificar a sua luta (e ainda bem que o têm e o usam). Questionei-me se só serão feministas aquelas que ocupam lugares nos tribunais e podem, assim, explanar e aplicar a luta pela igualdade de géneros nas suas sentenças ou acórdãos. Que podem, dada a sua mediatização, levar a luta até aos jornais ou elaborarem extensos tratados académicos sobre esta luta tão digna que é a igualdade de géneros, a igualdade de direitos e oportunidades e o fim das sociedades patriarcais.

Conclui após alguma reflexão que as mulheres que têm textos publicados sobre a igualdade de género dão um importantíssimo contributo para esta luta, tão importante que é desejável que mais mulheres consigam e se disponham a ter um palco mediático ou académico para o poderem fazer. Um bem haja a todas essas mulheres que dedicam a sua vida profissional ou parte dela a esta luta. Mas depois também concluí que, a par desta forma de luta, existem milhares e milhares de mulheres anónimas ou menos mediáticas que, à sua maneira e com os instrumentos que têm, também fazem um verdadeiro activismo não institucionalizado, praticando os ideais feministas todos os dias, no seu pequeno universo, na sua própria forma de estar na vida. E não são menos feministas pela simples razão de não terem obra publicada.


A minha amiga Gisela, por exemplo, que vive num bairro um pouco degradado e arranja unhas como ninguém (aplica o gelinho como uma arte, é de verem) e que não teve, por razões diversas, oportunidade de ir além do nono ano pratica o feminismo como poucas. Arrisco até dizer que é a maior feminista da sua rua ou até mesmo do seu bairro. Ela não sabe quem foi Sojourner Truth, que tanto fez pelas mulheres no século XIX, ela também nunca ouviu falar de Ana Castro Osório, de Maria Lamas ou de Adelaide Cabete. Mas eu garanto-vos que na vida dela, desde miúda, foi uma activista feminista na sua rua, no seu cabeleireiro, na gestão da sua própria vida.

Foi feminista quando no café lá do bairro dizia às mulheres para não aceitarem ser menorizadas pelos maridos (fazia verdadeiros comícios), foi feminista quando na fábrica onde trabalhou antes de arranjar unhas foi falar com o patrão e, corajosamente, lhe perguntou porque razão ganhava menos que o colega Alberto se fazia trabalho igual, foi feminista quando despachou o marido de casa depois de este ter ousado dar-lhe uma tareia que a levou ao hospital Beatriz Ângelo (mal sabia ela que esta foi uma famosa feminista) para suturar o golpe e depois à esquadra da polícia para apresentar queixa. Foi feminista quando dizia à filha diversas vezes que nunca devia aceitar discriminações, que devia lutar por direitos iguais e combater estigmas. Ou quando ensinava à filha que não havia problema algum em brincar com bolas e carros e ao filho que o gosto dele pelo ballet era tão normal como o do amiguinho da escola pelo futebol.

Tenho muitas dúvidas que a Gisela tenha textos escritos ou obra publicada sobre o feminismo. Acho que, de vez em quando, fazia uns rabiscos num papel (que colava no frigorífico) a avisar o marido que não permitia ser vista como a empregada da casa e que ou ele passava a partilhar tarefas e deixava de ver a casa como obrigação apenas dela ou o caldo podia entornar. Acho que uma vez, estava ela no Porto de férias em casa de uma prima, escreveu uma carta ao marido a explicar-lhe que os tempos mudarem e que não lhe permitia machismos e muito menos violência doméstica porque um casamento era uma parceria para a vida e ambos tinham direitos iguais. A Gisela tem estes rabiscos e esta carta mas eu não sei se a doutora Clara Sottomayor considera que são obra suficiente para fazer dela uma feminista.

Eu acho que ela é a maior feminista da sua rua e tem mudado mentalidades no seu pequeno mundo e no seu microambiente, como poucas. As mulheres lá da rua da Gisela, ou algumas, vá lá, deixaram de se sentir vítimas por serem agredidas pelos maridos, começaram a impor-se e a lutar por respeito e tratamento igual e começaram a vestir-se como gostam sem temerem ser consideradas umas depravadas e levianas. É verdade que muitas das vizinhas pagaram um preço alto e viram o casamento descambar, agora que não assentava numa lógica de poder masculino, mas também houve aquelas que conseguiram obter a compreensão dos companheiros. Foi a nível local, é certo, não teve amplitude nacional, é certo, a Gisela não foi ouvida ou lida por todo o país, é verdade, mas localmente esta esteticista fez a diferença. Na sua vida e na de outras.

E não é localmente, dentro da nossa família, na nossa vida, na educação aos nossos filhos, nos nossos posicionamentos, que todas nós podemos fazer a diferença? Cada uma localmente não ficamos muitas? Não é assim que se pratica o feminismo? Ou será só com textos publicados?

Quanto a mim, bom, sou uma mera jornalista, mulher e mãe. Conheço a história do feminismo, as três vagas que existiram desde o século XIX, estou a par das várias correntes (porque não há um feminismo, há vários), já li bastante sobre as sufragistas e sei quem é Carolina Beatriz Ângelo ou Ana Castro Osório, ou as três Marias, e tenho uns textitos publicados, coisa muito pouca, não será certamente obra de monta, mas sou exactamente como a minha amiga Gisela, aplico os ideias feministas, a luta pela igualdade de géneros desde tenra idade, sempre que opino e me bato contra o poder patriarcal nas sociedades. E, agora, mais importante que tudo, na educação que dou à minha filha.

 

5 comentários:

  1. Este texto da Inês Bastos problematiza o(s) feminismo(s) (no qual se revê e qualquer pessoa sensata se deve rever) mas tem um objectivo ambicioso, onde questiona alguns conceitos e daí ser imediatamente alvo de críticas ferozes por parte de pessoas que não obstante consideram que são defensoras dos direitos das mulheres, ainda assim advogam que há umas mais mulheres e feministas do que outras. Estas outras e como muito bem é retratato no texto, não têm artigos publicados nem tiveram a sorte de serem consideradas de mérito, mas que no seu dia a dia dão provas práticas da sua luta em prol das desigualdades de género. Há quem não conseguiu ainda captar a dimensão plural dos feminismos e as contradições de género na sociedade e que se abriga em extremismos desnecessários. Excelente texto.

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  2. Obrigada. Sim, de facto, há vários movimentos e teorias dentro do feminismo. Alguns extremistas que eu até considero que vão além do feminismo e representam o machismo ao contrário. E depois, há um certo feminismo elitistas que em nada abona a favor da luta porque cria divisões e estratos. O meu feminismo é o da igualdade. Não o de ser anti-homem.

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  3. Grande texto Inês. Todas devíamos ser feministas à nossa maneira.

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