segunda-feira, 9 de maio de 2016

Viver feliz aos 40 (e tais)


Diz o povo que os 40 são os novos 20. Agora, a nova moda é dizer que é aos 50 que se começa a viver, tudo o que antes veio foi apenas um estágio. Até acho que posso acreditar. Mas continuo na minha: não há como os 40, mas também não há como os 30, com a diferença que aos 40 a esmagadora maioria de nós sabe bem, pelo menos, o que não quer. Depois, há aquelas que, mesmo sabendo o que não querem, insistem em aceitar e viver no que não querem, por medo, por comodismo, por masoquismo. E há tantas e tantos por aí que vivem no que não querem. Quase sempre por medo. Por medo de olhar para dentro, por medo de falhar, por medo de sair da zona de conforto, por medo de perder o emprego estável mas chato ou indigno, por medo de saltar de um casamento que, sendo mau sempre é alguma coisa, por medo de viverem sozinhas e perderem as mordomias que dois salários trazem, por medo de serem engolidas pela solidão porque acham que viver sem homem é viver infeliz. Quando não há maior infelicidade que viver sozinho acompanhado.

Eu vivo sem um casamento e vivo (muito) feliz. Com dias em que mais me apetece não sair da cama ou sequer olhar ao espelho, com dias em que a ansiedade toma um pouco conta de mim (como acontece a toda a boa gente), mas feliz. Por uma única e principal razão: agora, sim, aos 40, vivo (quase) de acordo com a minha essência, com o que realmente quero e afasto sem culpa ou medos o que não quero. E os 40, com todas as mazelas que trazem (a gravidade, os filhos mais crescidos, o corpo a dar de si, o tempo a ficar mais curto), são, de facto, uma idade de ouro para quem souber fazer o caminho interior certo para lá chegar. Sim, porque não basta fazer 40 e catrapuz...num segundo ficamos em paz ou mais sábias ou mais maduras. Nada disso. Há uma viagem para fazer que muitos a evitam porque dói. É a viagem interior, até ao nosso centro, até à nossa essência.

O que gostamos, de facto? O que queremos, de facto? O que não queremos, de facto? Que sonhos temos? Como queremos viver o dia-a-dia? Que medos me estão a prejudicar? Que defeitos me estão a afastar de mim e dos outros? Esta é, para mim, a principal viagem da nossa vida, a viagem ao nosso interior. Foi a viagem que iniciei há muitos anos e que começou a dar frutos, precisamente, à beira dos 40. Por isso, acabei com um casamento que nada tinha a ver com a minha essência, abdiquei do conforto material para ter equilíbrio e coerência emocional, parti na aventura de educar uma filha com os valores da igualdade, fraternidade e liberdade, fui ficando cada vez mais feliz e mais conectada com o meu interior, após anos de dor que se seguiram à separação e que já vinham de anos anteriores. Dei-me ao trabalho de me divorciar para ser mais feliz, porque, acreditem, dá trabalho.

Dei-me ao trabalho de fazer o caminho das pedras para ser mais feliz. Porque, acreditem, dá trabalho. Dei-me ao trabalho de olhar para dentro e exercitar dia após dia a mente, o pensamento, o auto-controlo para ser mais feliz. E, acreditem, dá muito trabalho. Se pensam que a viagem ao interior obtém resultados no dia seguinte, estão à partida a desistir. Demora meses e anos. É um processo de cai-levanta, tenta-erra. Mas é a mais deliciosa viagem de todas. Hoje, sou predominantemente feliz comigo. E isto resume-se a um indicador: vivo de acordo com a minha essência, com o que acredito. Não faço fretes, não aceito pessoas que não sejam para acrescentar e tento em cada decisão e em cada acção colocar o meu amor e a minha sensatez.

Mulheres de 40 (e tais) como eu, que fizeram a tal viagem e estão de bem consigo e com a vida, não estão com alguém só por estar, só por companhia. Estão por muito mais até que uma paixão. Mulheres como eu estão com um companheiro, um parceiro. Ou então, não estão. Porque valem-se a si próprias. Vivo em paz, sem alimentar maus sentimentos, mesmo contra aqueles que me querem mal. Posso ter pouco, posso estar à beira do desemprego, posso viver com dificuldades financeiras (esta parte irrita-me, confesso) mas vivo de acordo com o que acredito ser o bem e sempre a acreditar que posso colocar o melhor de mim no pouco que seja. E que há sempre caminho interior e exterior ainda por fazer porque a vida tem de ser vista como a maior das benções e a felicidade não é algo que se deseja, é algo que se tem. Que se está. A vida tem de ser vivida como achamos que devemos e não como os outros acham que a devemos viver. Caso, contrário, vivemos aprisionadas.

Posso garantir que não há paz maior do que aquela que advém de vivermos em ligação estreita com o que realmente somos e queremos.

segunda-feira, 18 de abril de 2016

Regresso

Andei uma semana desaparecida, muito por causa, como aqui relatei antes, da inesperada morte da cadela da minha irmã, que era para mim uma sobrinha. Foi-se-me o tempo, a vontade e a inspiração. A Améle, era esse o seu nome, era uma cadela reservada e muito doce e a sua partida teve tanto de inesperado, como de revoltante. Sinto que estive a fazer um luto. Na minha família, os animais são gente e sentimos a sua partida como tal. Ainda estamos todos em choque e a habituar-nos a não a ter.

Posto isto, retomo as minhas anotações e crónicas. Entretanto, no meio deste caos, foi publicado o meu primeiro texto na plataforma feminista Capazes, que muito me encheu de orgulho e que amanhã já partilharei aqui,

Uma boa noite a todos e a mim também, já agora.

quinta-feira, 7 de abril de 2016

Mas afinal como se pratica o feminismo?


Aqui há uns dias estava eu a trocar argumentos com a juíza conselheira Clara Sottomayor, publicamente, na sua página de Facebook, sobre problemas como a violência doméstica e a alienação parental (que a douta conselheira rejeita e eu alerto que existe, de facto), quando a jurista de reconhecido mérito (e merecido) questiona a minha natureza feminista e o meu activismo. Pergunta-me se eu tenho textos publicados que provem que sou de facto uma feminista. E insiste: mostre-me os seus textos.

Fiquei pasma. E fiquei a pensar naquilo. Fiquei a pensar se só serão feministas as mulheres que tenham publicado textos em órgãos de comunicação social ou em páginas de organizações activistas. Se só serão feministas as mulheres que têm a oportunidade de chegar à Assembleia da República, como deputadas, ou pertencerem a um partido, onde têm um palco para amplificar a sua luta (e ainda bem que o têm e o usam). Questionei-me se só serão feministas aquelas que ocupam lugares nos tribunais e podem, assim, explanar e aplicar a luta pela igualdade de géneros nas suas sentenças ou acórdãos. Que podem, dada a sua mediatização, levar a luta até aos jornais ou elaborarem extensos tratados académicos sobre esta luta tão digna que é a igualdade de géneros, a igualdade de direitos e oportunidades e o fim das sociedades patriarcais.

Conclui após alguma reflexão que as mulheres que têm textos publicados sobre a igualdade de género dão um importantíssimo contributo para esta luta, tão importante que é desejável que mais mulheres consigam e se disponham a ter um palco mediático ou académico para o poderem fazer. Um bem haja a todas essas mulheres que dedicam a sua vida profissional ou parte dela a esta luta. Mas depois também concluí que, a par desta forma de luta, existem milhares e milhares de mulheres anónimas ou menos mediáticas que, à sua maneira e com os instrumentos que têm, também fazem um verdadeiro activismo não institucionalizado, praticando os ideais feministas todos os dias, no seu pequeno universo, na sua própria forma de estar na vida. E não são menos feministas pela simples razão de não terem obra publicada.


A minha amiga Gisela, por exemplo, que vive num bairro um pouco degradado e arranja unhas como ninguém (aplica o gelinho como uma arte, é de verem) e que não teve, por razões diversas, oportunidade de ir além do nono ano pratica o feminismo como poucas. Arrisco até dizer que é a maior feminista da sua rua ou até mesmo do seu bairro. Ela não sabe quem foi Sojourner Truth, que tanto fez pelas mulheres no século XIX, ela também nunca ouviu falar de Ana Castro Osório, de Maria Lamas ou de Adelaide Cabete. Mas eu garanto-vos que na vida dela, desde miúda, foi uma activista feminista na sua rua, no seu cabeleireiro, na gestão da sua própria vida.

Foi feminista quando no café lá do bairro dizia às mulheres para não aceitarem ser menorizadas pelos maridos (fazia verdadeiros comícios), foi feminista quando na fábrica onde trabalhou antes de arranjar unhas foi falar com o patrão e, corajosamente, lhe perguntou porque razão ganhava menos que o colega Alberto se fazia trabalho igual, foi feminista quando despachou o marido de casa depois de este ter ousado dar-lhe uma tareia que a levou ao hospital Beatriz Ângelo (mal sabia ela que esta foi uma famosa feminista) para suturar o golpe e depois à esquadra da polícia para apresentar queixa. Foi feminista quando dizia à filha diversas vezes que nunca devia aceitar discriminações, que devia lutar por direitos iguais e combater estigmas. Ou quando ensinava à filha que não havia problema algum em brincar com bolas e carros e ao filho que o gosto dele pelo ballet era tão normal como o do amiguinho da escola pelo futebol.

Tenho muitas dúvidas que a Gisela tenha textos escritos ou obra publicada sobre o feminismo. Acho que, de vez em quando, fazia uns rabiscos num papel (que colava no frigorífico) a avisar o marido que não permitia ser vista como a empregada da casa e que ou ele passava a partilhar tarefas e deixava de ver a casa como obrigação apenas dela ou o caldo podia entornar. Acho que uma vez, estava ela no Porto de férias em casa de uma prima, escreveu uma carta ao marido a explicar-lhe que os tempos mudarem e que não lhe permitia machismos e muito menos violência doméstica porque um casamento era uma parceria para a vida e ambos tinham direitos iguais. A Gisela tem estes rabiscos e esta carta mas eu não sei se a doutora Clara Sottomayor considera que são obra suficiente para fazer dela uma feminista.

Eu acho que ela é a maior feminista da sua rua e tem mudado mentalidades no seu pequeno mundo e no seu microambiente, como poucas. As mulheres lá da rua da Gisela, ou algumas, vá lá, deixaram de se sentir vítimas por serem agredidas pelos maridos, começaram a impor-se e a lutar por respeito e tratamento igual e começaram a vestir-se como gostam sem temerem ser consideradas umas depravadas e levianas. É verdade que muitas das vizinhas pagaram um preço alto e viram o casamento descambar, agora que não assentava numa lógica de poder masculino, mas também houve aquelas que conseguiram obter a compreensão dos companheiros. Foi a nível local, é certo, não teve amplitude nacional, é certo, a Gisela não foi ouvida ou lida por todo o país, é verdade, mas localmente esta esteticista fez a diferença. Na sua vida e na de outras.

E não é localmente, dentro da nossa família, na nossa vida, na educação aos nossos filhos, nos nossos posicionamentos, que todas nós podemos fazer a diferença? Cada uma localmente não ficamos muitas? Não é assim que se pratica o feminismo? Ou será só com textos publicados?

Quanto a mim, bom, sou uma mera jornalista, mulher e mãe. Conheço a história do feminismo, as três vagas que existiram desde o século XIX, estou a par das várias correntes (porque não há um feminismo, há vários), já li bastante sobre as sufragistas e sei quem é Carolina Beatriz Ângelo ou Ana Castro Osório, ou as três Marias, e tenho uns textitos publicados, coisa muito pouca, não será certamente obra de monta, mas sou exactamente como a minha amiga Gisela, aplico os ideias feministas, a luta pela igualdade de géneros desde tenra idade, sempre que opino e me bato contra o poder patriarcal nas sociedades. E, agora, mais importante que tudo, na educação que dou à minha filha.

 

quarta-feira, 6 de abril de 2016

Pedro Arroja está desesperado e a desintegrar-se

Pedro Arroja está desesperado. Representa os resquícios de uma sociedade da idade média que tem vindo, felizmente, a desintegrar-se, mais devagar que o desejável mas sempre a dar passos seguros. E Pedro Arroja anda aflito, a esbracejar, a afundar-se na sua própria mentalidade das cavernas e grita pedidos de ajuda incoerentes e disparatados, sem que alguém, nem os que até alinham com algumas das suas ideias, lhe dê a mão.

Pedro Arroja está desesperado, começa a ver o mundo a andar em frente, as sociedades a elevarem-se e ele, pobre coitado, a ficar isolado numa ilha sem árvores, sem seres vivos, apenas cavernas, areia lamacenta e muitos papões para o atormentarem à noite.

Este senhor aqui em baixo anda perdido, está desorientado com os ganhos da mulher pela igualdade de direitos nas sociedades ocidentais e modernas, pela luta pelo fim das sociedades patriarcais que ano após ano ganha mais adeptos e avança mais uns metros.

 
O rei dos homofóbicos odeia homens homossexuais, odeia mulheres que saem de casa para trabalhar, odeia feministas, odeia mulheres que alcançam sucesso em qualquer área da sua vida, odeia o mundo democrático e livre e, no final de todo este percurso, odeia-se a si próprio. Vive perdido numa sociedade que caminha para a igualdade de géneros, para o respeito pelo próximo, sem olhar a raça e géneros.
 
Depois de ter chamado "esganiçadas" às dirigentes do Bloco de Esquerda por elas serem dirigentes, veio agora mostrar mais um pouco do seu fel cavernoso, escrevendo no seu blogue qualquer coisa como: "A ascensão generalizada de mulheres nas direcções partidárias é um sinal de degenerescência dos partidos". Cada vez que uma mulher chega a um lugar de liderança Pedro Arroja esvai-se em diarreia. Contorce-se em espasmos sofridos e caga-se todo. Desfez-se em diarreia quando Assunção Cristas chegou à liderança do CDS e borrou-se (mentalmente falando) quando Passos escolheu mulheres para a vice-presidência do PSD. Como é que é possível que mulheres cheguem à liderança de organizações políticas? Um lugar natural dos homens. E não aguentou a dor e evacuou de novo, com uma explicação mais ou menos assim: Como os partidos políticos são organizações "sectárias por excelência", descendendo directamente de "seitas protestantes", elevar uma mulher à liderança "é enfraquecer o espírito partidário".
 
Vamos por partes. Arroja até acerta num ponto. Há centenas de anos os partidos nasceram como organizações sectárias, da mesma forma como há centenas de anos as mulheres não tinham direito ao voto, nem sequer a trabalhar fora de casa e em que serem violentadas pelos maridos era visto como normal e aceitável. Não podiam usar calças sem que fossem apelidadas de depravadas e mulheres da vida, não podiam entrar em cafés, não deviam falar de política, não podiam viajar para o estrangeiro sem autorização do seu senhor marido, não podiam ser juízas ou militares. E podia continuar...
 
O que Pedro Arroja -  um economista a quem o Porto Canal dá palco à sua revolta - se esquece é que o mundo mudou, as sociedades mudarem, as tradições mudaram, as leis mudarem, as mentalidades estão a mudar. Como tal, e obviamente, a mudança chegou aos partidos. Claro como a água. E se o "espírito sectário" de que Arroja fala significa que os partidos sejam intolerantes e funcionem como seitas (é o que significa sectário), então, ao dizer que as mulheres, com o seu "espírito comunitário",  vão enfraquecer o sectarismo dos partidos, este economista está sem se aperceber a fazer um elogio ao impacto da subida das mulheres às lideranças. E até merece aplausos. Por tudo isto e muito mais o fim do espírito sectário nas organizações com a liderança das mulheres só pode mesmo ser uma boa notícia.
 
Por isso, mulheres, mulheres que lideram, mulheres que alcançaram a liderança de partidos, mesmo que nos/vos incomode os contantes ataques de Pedro Arrojo, vejam tal diarreia como um rasgado elogio, porque é notável que alguém reconheça que o espírito comunitário das mulheres "enfraquece" o espírito sectário dos homens nos partidos. E pensem: Pedro Arroja está desesperado, a sua alma ficou parada na caverna, o seu espírito vê-se cada vez mais isolado numa ilha lamacenta, escura e pejada de fantasmas. Há que perdoar e tentar ajudar, recomendando uma minuciosa terapia, acompanhada de soro para a desidratação. É que, dado que cada vez são mais as mulheres que chegam a lugares de topo nos partidos, Arroja arrisca-se a uma desintegração por tanta evacuação.
   
 

terça-feira, 5 de abril de 2016

Hoje é que é!

Quantos de nós já não disse esta frase uma montanha de vezes? Hoje é que é! É hoje que vou começar a fazer aqueles exercícios para combater esta 'pneu' dos 40 (e tais), é hoje que vou substituir aquela maldita batata frita por um abacate diário ou por um belo prato de espinafres salteados (e que bons que são).

É hoje, é hoje, é hoje mas nunca é. Ganha sempre o sofá nesta guerra titânica ou ganha sempre aquela-ida-à-esplanada que está mesmo, mesmo a chamar por nós. E o hoje lá passa para amanhã. "Amanhã é um bom dia", sussurra o Tico para o Teco. "Amanhã, tens uma agenda mais livre, não há almoço da miúda, o trabalho é mais ligeiro, não há café com amigas ou situações inesperadas que arrastam para depois 10 das 15 tarefas que tens planificadas na agenda", insiste o Tico, para convencer o Teco.

Já chega! É mesmo amanhã. Amanhã, 'bora lá acordar bem cedinho e fazer os exercícios que se podem ver aqui em baixo.



 
Isto nem me parece nada difícil. Estica uma perna para trás, agacha o rabo, flexiona as pernas e estica a barriga. E já está. Garantem os profissionais destas coisas que se vai o 'pneu' dos 40 (e tais) e que ficamos uma verdadeira Top Model (sim, sim...). Não vai num ápice, de certeza, que eu aqui não sou tonta ao pensar que isto é tudo fácil e como a 'bimby'. Ah...mas vai, tem mesmo de ir.
 
E é já amanhã que começo. Eu já tinha dito que seria a 1 de Abril mas uma fatalidade que passou como um furacão na família deixou-me sem tempo (e disposição). Depois a miúda ficou doentinha e lá se foram os planos (e as promessas).  
 
Pronto. É amanhã.

Roupas e coisas assim

O look de hoje :-)

sábado, 2 de abril de 2016

Da maldade humana

Não sou uma pessoa de rodeios ou de andar em grandes voltas para chegar ao ponto. Não sou uma pessoa de escrita salpicada de muitos floreados (bem gostava de ter esta arte) para passar uma mensagem. Talvez defeito ou vantagem, sei lá, disto de ser jornalista. Por isso, feita esta introdução (ou será rodeio?) vou ao ponto.

Hoje foi um dia triste. À hora que escrevo - sem dormir há mais de 36 horas - tenho de dizer que ontem foi um dia triste. Um dia marcado pela negligência, falta de respeito e maldade. Cada uma das situações me parecem tão surreais que só acredito nelas porque as vivi.

A cadela da minha irmã morreu. Foi fazer uma simples lavagem aos dentes (com anestesia geral), um processo comum nos cães, e morreu horas depois do Hospital e veterinária terem desvalorizado e ignorado todos os alertas da dona sobre o estado de sofrimento em que a cadela se encontrava, o que para mim é uma grosseira negligência. Morreu, horas depois, já não foram a tempo quando de madrugada voltámos em desespero. Mas vou poupar os detalhes. Esta foi a situação que nos roubou um membro da família num ápice e sem esperarmos (e ver a dor do meu padrasto - que a adoptou como filha - é tão doloroso quanto a ida dela). A falta de respeito está em tudo o que se seguiu. Um muro de silêncio na clínica tão tipicamente português para tentar encobrir o que se passou. Ainda agora, não sabemos o que se passou. Ninguém apareceu, ninguém deu a cara, apesar dos insistentes pedidos da minha irmã para ter uma explicação. Isto será tratado em tribunal.

A história de maldade é a que se segue. Acabados de chegar da terra onde vivem, em desespero porque para todos os efeitos era uma filha/neta que tinha partido (para a minha família os animais são vistos e tratados assim), a minha mãe e o meu padrasto abraçaram-se à minha irmã num choro convulsivo quando ela se encontrava, mais desfalecida que desperta, sentada no primeiro de três degraus que dão acesso ao prédio contíguo à clínica. Foi ali que nos sentámos as duas desde as 6 da manhã para...sei lá...para pensar e viver o momento. Ela estava no degrau rasteiro ao passeio. Quando estamos a viver o reencontro (e todos sabem o despertar de emoções que se gera quando a família se vê pela primeira vez numa morte) chega uma senhora na casa dos 50 anos, hirta, expressão opaca, gélida. Desumana, até. Que dispara:

- Vocês são daqui? São deste prédio?

Como era eu a mais calma no meio daquela dor levantei-me e dirigi-me à senhora convicta que, enfim, era alguma responsável da clínica. Digo-lhe:

- Não, não, somos a família que acabou de saber que a sua cadelinha morreu e...

- Não podem estar aí sentadas. Isso é propriedade privada - atirou a dita, interrompendo-me, de cara gélida, desumana, toda ela hirta, arrogante, sem um pingo de alteração na expressão facial pelo que eu acabara de revelar.

Apanhada de surpresa, por um segundo achei que ela não me tinha ouvido bem. Reitero a notícia da morte, enquanto o meu padrasto, ausente, distante, continuava inconsolável.

- Isso não é uma sala de espera - atira ela, de novo, mais hirta ainda, mais desumana ainda, mais fria ainda, amarga. E continua: vou chamar a polícia.

Foi aqui que me alterei, depois de horas sem dormir, sem comer, a ver a minha irmã sofrer. Percebi na hora que aquela mulher (não vou trata-la por senhora) era simplesmente e profundamente má. Respondo-lhe, então, já fria também, que não só podia chamar a polícia, como seria eu própria a fazê-lo. E avancei para ela, exigindo-lhe que me desse o nome. Não deu. Acobardou-se e entrou de rompante no prédio, cuja porta de entrada fica a uns dois ou três metros do degrau rasteiro ao passeio onde nos encontrávamos.

Nem 10 minutos depois tínhamos junto a nós dois agentes da PSP incrédulos e chocados por repararem que tinham sido chamados a uma ocorrência que mais não era que um casal de mais de 60 anos e uma jovem a chorarem a morte daquele querido membro da família, sentados num pequeno degrau colado à porta da clínica veterinária. Tal era a incredulidade dos agentes que só não subiram ao prédio para inquirirem aquele ser humano (será?) tão ignóbil porque a dita, quando fez a denúncia, nem se identificou. Denunciou "confusão" à porta do seu prédio. A confusão era uma família destroçada num degrau do seu prédio. Os dois agentes da PSP deram-nos os sentimentos, autorizaram-nos a chorar no degrau e, antes de abalarem para, quem sabe, serviços sérios à comunidade, ainda nos disseram que ligássemos para a esquadra caso a mulher (recuso-me a chamá-la de senhora) voltasse a dizer-nos que, naquela situação, um degrau é propriedade privada.

E, além de toda a dor, tivemos de levar no dia de ontem com a mais surreal, feia e rasteira dimensão da maldade humana. Não consigo pensar em ilustração melhor para tal acto gélido e arrogante que a imagem de Jesus Cristo, para que a alma desta mulher possa quem sabe um dia ganhar alguma paz e receber algum amor.

Assusta-me tanto o rumo da humanidade. A maldade que está a tomar conta de tantas pessoas.