sábado, 2 de abril de 2016

Da maldade humana

Não sou uma pessoa de rodeios ou de andar em grandes voltas para chegar ao ponto. Não sou uma pessoa de escrita salpicada de muitos floreados (bem gostava de ter esta arte) para passar uma mensagem. Talvez defeito ou vantagem, sei lá, disto de ser jornalista. Por isso, feita esta introdução (ou será rodeio?) vou ao ponto.

Hoje foi um dia triste. À hora que escrevo - sem dormir há mais de 36 horas - tenho de dizer que ontem foi um dia triste. Um dia marcado pela negligência, falta de respeito e maldade. Cada uma das situações me parecem tão surreais que só acredito nelas porque as vivi.

A cadela da minha irmã morreu. Foi fazer uma simples lavagem aos dentes (com anestesia geral), um processo comum nos cães, e morreu horas depois do Hospital e veterinária terem desvalorizado e ignorado todos os alertas da dona sobre o estado de sofrimento em que a cadela se encontrava, o que para mim é uma grosseira negligência. Morreu, horas depois, já não foram a tempo quando de madrugada voltámos em desespero. Mas vou poupar os detalhes. Esta foi a situação que nos roubou um membro da família num ápice e sem esperarmos (e ver a dor do meu padrasto - que a adoptou como filha - é tão doloroso quanto a ida dela). A falta de respeito está em tudo o que se seguiu. Um muro de silêncio na clínica tão tipicamente português para tentar encobrir o que se passou. Ainda agora, não sabemos o que se passou. Ninguém apareceu, ninguém deu a cara, apesar dos insistentes pedidos da minha irmã para ter uma explicação. Isto será tratado em tribunal.

A história de maldade é a que se segue. Acabados de chegar da terra onde vivem, em desespero porque para todos os efeitos era uma filha/neta que tinha partido (para a minha família os animais são vistos e tratados assim), a minha mãe e o meu padrasto abraçaram-se à minha irmã num choro convulsivo quando ela se encontrava, mais desfalecida que desperta, sentada no primeiro de três degraus que dão acesso ao prédio contíguo à clínica. Foi ali que nos sentámos as duas desde as 6 da manhã para...sei lá...para pensar e viver o momento. Ela estava no degrau rasteiro ao passeio. Quando estamos a viver o reencontro (e todos sabem o despertar de emoções que se gera quando a família se vê pela primeira vez numa morte) chega uma senhora na casa dos 50 anos, hirta, expressão opaca, gélida. Desumana, até. Que dispara:

- Vocês são daqui? São deste prédio?

Como era eu a mais calma no meio daquela dor levantei-me e dirigi-me à senhora convicta que, enfim, era alguma responsável da clínica. Digo-lhe:

- Não, não, somos a família que acabou de saber que a sua cadelinha morreu e...

- Não podem estar aí sentadas. Isso é propriedade privada - atirou a dita, interrompendo-me, de cara gélida, desumana, toda ela hirta, arrogante, sem um pingo de alteração na expressão facial pelo que eu acabara de revelar.

Apanhada de surpresa, por um segundo achei que ela não me tinha ouvido bem. Reitero a notícia da morte, enquanto o meu padrasto, ausente, distante, continuava inconsolável.

- Isso não é uma sala de espera - atira ela, de novo, mais hirta ainda, mais desumana ainda, mais fria ainda, amarga. E continua: vou chamar a polícia.

Foi aqui que me alterei, depois de horas sem dormir, sem comer, a ver a minha irmã sofrer. Percebi na hora que aquela mulher (não vou trata-la por senhora) era simplesmente e profundamente má. Respondo-lhe, então, já fria também, que não só podia chamar a polícia, como seria eu própria a fazê-lo. E avancei para ela, exigindo-lhe que me desse o nome. Não deu. Acobardou-se e entrou de rompante no prédio, cuja porta de entrada fica a uns dois ou três metros do degrau rasteiro ao passeio onde nos encontrávamos.

Nem 10 minutos depois tínhamos junto a nós dois agentes da PSP incrédulos e chocados por repararem que tinham sido chamados a uma ocorrência que mais não era que um casal de mais de 60 anos e uma jovem a chorarem a morte daquele querido membro da família, sentados num pequeno degrau colado à porta da clínica veterinária. Tal era a incredulidade dos agentes que só não subiram ao prédio para inquirirem aquele ser humano (será?) tão ignóbil porque a dita, quando fez a denúncia, nem se identificou. Denunciou "confusão" à porta do seu prédio. A confusão era uma família destroçada num degrau do seu prédio. Os dois agentes da PSP deram-nos os sentimentos, autorizaram-nos a chorar no degrau e, antes de abalarem para, quem sabe, serviços sérios à comunidade, ainda nos disseram que ligássemos para a esquadra caso a mulher (recuso-me a chamá-la de senhora) voltasse a dizer-nos que, naquela situação, um degrau é propriedade privada.

E, além de toda a dor, tivemos de levar no dia de ontem com a mais surreal, feia e rasteira dimensão da maldade humana. Não consigo pensar em ilustração melhor para tal acto gélido e arrogante que a imagem de Jesus Cristo, para que a alma desta mulher possa quem sabe um dia ganhar alguma paz e receber algum amor.

Assusta-me tanto o rumo da humanidade. A maldade que está a tomar conta de tantas pessoas.

     

6 comentários:

  1. Querida Inês, o mundo está cheio de gente estúpida, e nós temos que saber lidar com isso.
    Esquece e concentra-te em ajudar a tua irmã e restante família, que sofre por ter perdido uma perta dela.

    Um beijo para todos, de alguém que sabe mto bem o que estão a passar.
    marta

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    1. Olá querida Marta. Sim, o episódio é para esquecer de tão rasteiro que é. O foco está na perda e sei que tu sabes o que é pq vês os animais como nós vemos. Beijinho doce para ti.

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    2. Olá querida Marta. Sim, o episódio é para esquecer de tão rasteiro que é. O foco está na perda e sei que tu sabes o que é pq vês os animais como nós vemos. Beijinho doce para ti.

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  2. mau demais para ser verdade. Há seres humanos que metem nojo

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  3. Cara Inês. Sou amigo da sua irmã e desde sábado que fiquei/ficámos, eu e a minha mulher, à espera da João para um "ensaio" de Yoga Suspenso. A ausência da João deixou-me com a pulga atrás da orelha, em português que todos possamos entender. Algo de errado se estava a passar, pois a João que conhecemos não faria isto.

    Entendemos no sábado parte da razão e agora após esta leitura fecharam-se as dúvidas, pelo que desde já lamentamos o sucedido.

    O razão de civilidade de um povo mede-se pela forma como trata os seus animais, já dizia Ghandi e infelizmente o espaço dos animais para muitos dos portugueses é serem enfeites sociais e animadores do lar. Esquecem-se da simples dignidade de um ser vivo que aloja uma alma e que nos enche de amor INCONDICIONAL.

    Ainda acredito no ser humano e acredito que tudo, mas tudo tem o seu retorno, aqui e não na próxima viagem.

    Deixo outro beijo à João e o nosso pesar a toda a familia.

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    1. Obrigada Bruno. Como escrevi, uma maldade tão surreal que eu achei que não existia nesta vida. Ainda agora parece me dificil de acreditar. Acredito porque vi e vivi. Obrigada pelas palavras. Tb eu gostaria de fazer yoga sensorial. :)

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